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Fado ou DENTRO DE TI VER O MAR | CRÍTICA | AGRIPINA CARRIÇO VIEIRA| REVISTA COLÓQUIO LETRAS

 

Dentro de Ti Ver O MarFado ou Dentro de Ti Ver o Mar
Romance de Inês Pedrosa
Edição revista pela autora, 246 pp., Porto Editora
Primeira edição (2012): 344 páginas, Dom Quixote
Edição brasileira: 256 páginas, Alfaguara

 

 

Na comemoração dos seus vinte anos de carreira literária, Inês Pedrosa presenteia os seus leitores com um romance intitulado Dentro de Ti Ver o Mar, que se inscreve, desde a epígrafe, na linhagem não só da literatura do/no feminino, mas sobretudo num feminino de contestação e de desinquietação, que recua até ao século XVII. Na abertura do corpo do texto reencontramos uma citação da obra emblemática Novas Cartas Portuguesas (escrita nos anos 70 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa) que enuncia o tema que atravessa os três textos em diálogo: a subjugação da mulher. Como Maria Graciete Besse observa, a obra das «três Marias» constitui-se como «um discurso de insurreição» contra a subjugação do poder masculino, que encontra na figura da Soror Mariana Alcoforado, autora diegética quando não empírica das Cartas Portuguesas publicadas em 1669 (a controvérsia sobre a autoria da obra mantém-se), «o símbolo de todas as mulheres, [...] o arquétipo da alienação e da clausura feminina no seio da sociedade patriarcal». A assunção desta herança de insurreição por parte de Inês Pedrosa, que se estende a inúmeros elementos da diegese — a vivência epistolográfica da relação de afirmação identitária, a dor de amar, a violência conjugal, a incapacidade de expressar verbalmente a dor, a correlação entre o mar e o amor —, é não só signo de homenagem a essas obras e a essas escritoras mas também marca de inscrição do seu romance nessa linhagem de inquietude e questionação, ancorando-a, no entanto, ao seu tempo.
Dentro de Ti Ver o Mar constrói-se em torno de um eixo central constituído pela história do amor proibido entre Rosa Cabral, uma fadista de sucesso, e Gabriel, um livreiro casado e mulherengo. Para além de Rosa, acompanhamos igualmente a existência de outras duas figuras femininas, Luísa Fontanellas, uma bem-sucedida engenheira, e Farimah, a jovem iraniana que com ela viaja para Lisboa fugindo aos preceitos muçulmanos que a obrigam ao casamento. Alternadamente, e até ao capítulo xiii, momento em que as três existências se cruzam, cada capítulo privilegia uma destas personagens dando-nos a conhecer acontecimentos que marcaram as suas existências. De Luísa descobrimos a sua infância com a madrasta, o abandono da filha, a missão que assumiu de «alterar o destino» de mulheres subjugadas pelo poder patriarcal, como fizera com Farimah ao trazê-la para Lisboa, arranjando--Ihe um casamento por conveniência com um ativista de direitos humanos e seropositivo. O encontro entre estas três mulheres dá-se quando Luísa apresenta Farimah a Rosa, iniciando-se aí uma cumplicidade fraterna entre as duas jovens.
Esta é a história de mulheres que, por motivos diversos, questionam as suas emoções. Pondo em causa a existência que até aí levavam, partem em busca da sua identidade. Depois do fracasso da relação com Gabriel e da morte da mãe, Rosa procura desesperadamente conhecer a sua identidade, encetando uma viagem que a conduz até ao Brasil e até Joaquim. Para além de encontrar o pai, descobre que Luísa é sua mãe, revelação que a condena à condição de filha rejeitada e abandonada. A descoberta do segredo guardado durante décadas obrigará Luísa a questionar as suas opções e os seus sentimentos, levando-a a aceitar o amor do homem que outrora rejeitara por considerá-lo socialmente inferior. Na Europa, Farimah deparar-se-á com um outro tipo de subjugação, já não a do poder de seu pai, que a obrigava a um casamento que não queria, mas a que tem origem no desejo do seu protetor e dos seus amigos de a transformar num «argumento político, [njum troféu, [n]um símbolo». Ao invés da tão almejada liberdade, Farimah vê-se confrontada com uma nova luta contra esta outra forma de alienação, que pretende torná-la representante de uma cultura e de uma sociedade que rejeitou e da qual fugiu. É nos braços de Nelson Mandela, jovem de origem cabo-verdiana, que Farimah deixará de ser considerada um estereótipo para ser uma mulher desejada e amada.
Convocando para a sua narrativa outros textos, outros tempos, outros modos de relação com o outro, Inês Pedrosa ancora-se na atualidade discutindo aberta e corajosamente os valores que marcam o tempo presente, lançando sobre a nossa sociedade um olhar crítico. Do retrato desenhado, destaca-se o cada vez maior isolamento das pessoas que preferem as suas «cápsulas de música» ao contacto com o outro com quem se cruzam, a descrença no poder da justiça, o direito de cada um à individualização e à identidade, o erotismo no feminino, os códigos culturais e sua influência nas relações humanas, a validade da instituição casamento.
A existência destas personagens é-nos revelada através do olhar e da voz de uma curiosa e autoproclamada narradora, a Princesa Lina, que desafia convenções do género. Esta é, porventura, a mais complexa das personagens da obra, assumindo-se primeiramente como criação de Gabriel, que se apaixonara por essa figura pictórica do século xix « estampada numa caixa de chocolates», e a transformara na sua «amante de cartão», diante da qual se masturbava e a quem pedia socorro. De personagem fantasmagórica, que apenas para Gabriel tem existência, a Princesa Lina assume, em voz e por iniciativa próprias, o papel de condutora da narrativa, ao arrepio do texto cuja arquitetura desmente tal leitura, interpelando o leitor com intervenções que dão conta de preocupações metaficcionais, muito ao jeito da escrita romântica. A inovação reside no facto de esse ser e voz de papel, na designação de Michel Butor, «encarnar» numa personagem actante. Esta curiosa mutação ocorre no capítulo sintomaticamente intitulado «Crime», quando a Princesa Lina visita Gabriel na sua livraria, encetando-se deste modo um desconcertante diálogo. Podemos ler nesta construção da narradora não só um traço de humor, mas também um desafio da autora, que, apelando à cumplicidade do leitor, o convida a entrar num jogo em que «as coisas nunca são o que parecem». Parafraseando a sua narradora, que a certa altura afirma, para espanto de Gabriel: «Eu posso tudo, é uma das prerrogativas da ficção», Inês Pedrosa poderá estar enviesadamente a dizer-nos: Eu posso tudo, é uma prerrogativa da autora. Desconcertante é igualmente o final da efabulação. Conclui-se o entrecho com o relato da morte de Gabriel num voo para Paris depois de aí ter encontrado fortuitamente Rosa, a que se segue uma síntese dos últimos momentos de Rosa depois de uma longa vida de sucessos.
Tendo como pretexto os desamores de Rosa, a incapacidade de entrega de Luísa e a conquista de liberdade de Farimah, o que Inês Pedrosa nos propõe é que a acompanhemos na desconstrução de ideias e ideologias fabricadas e difundidas como se de verdades absolutas se tratassem. Mais do que a procura e assunção de identidades individuais, Dentro de Ti Ver o Mar questiona a nossa identidade coletiva e a (i)mutabilidade dos valores da sociedade.

Agripina Carriço Vieira
Colóquio-Letras, Maio de 2013

 
 
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