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Desamparo | Crítica | Anabela Pinto | Apresentação de Desamparo na Biblioteca Camilo Castelo Branco, em V. N. Famalicão

 

Dentro de Ti Ver O MarDesamparo – Romance
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 320 páginas, Dom Quixote.
Edição brasileira: 296, Leya
Edição croata: 208, OceanMore

 

 

Texto de apresentação do romance Desamparo pela escritora Anabela Pinto.

Seja bem-vinda, Inês Pedrosa. Sejam bem-vindos todos os que aqui se encontram hoje para ouvir o que “Desamparo” nos diz e o que a sua autora, Inês Pedrosa, gentilmente vai partilhar connosco.
Falar desta mulher, escritora, jornalista, representante da cultura em Portugal, é recorrer a sessenta e cinco páginas de currículo. Assim, teremos de nos cingir apenas a algumas referências. Enquanto jornalista, teve importantes passagens pelo Jornal de Letras, Artes e Ideias, pelo O Independente, pelo Expresso e pelo Sol. Em 2012 e 2014 integrou o júri do Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura; no início de 2008, e até 2014, assumiu a direção da Casa Fernando Pessoa; tem, desde sempre, um papel ativo na defesa dos direitos de todos, nomeadamente na defesa do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Para além disto, tem publicadas vinte obras, algumas com edições internacionais, e quatro peças de teatro. E mais poderíamos aqui particularizar mas, depois desta brevíssima apresentação de Inês Pedrosa, centremo-nos em “Desamparo”, publicado pela D. Quixote.
Convém desde já dizer que me foi difícil seleccionar o que contar, pois cada página tem algo a revelar. Estamos perante trinta e cinco capítulos que, de um modo pregnante, como mais à frente se aperceberão, e na leitura bem sentirão, nos metem dentro da vida, da absoluta e absurdamente vida dos desamparados, ou não tão desamparados assim. A primeira coisa que me prendeu foram as descrições iniciais que nos dão a conhecer a ilusão do que é Portugal, através deste espaço que não existe, vila de Lagar (p.11). E logo aí somos confrontados com o episódio dos funerais sem corpo, e somos apresentados à morte que, de uma maneira ora mais velada, ora mais descarada, nos vai aparecendo ao longo dos capítulos. E eis que surge Jacinta Sousa, a portuguesa que emigra com o pai para o Brasil em 1927, modista de profissão, que tem três filhos, cujos nomes começam todos por “R”: Rita, Raul e Rafinha, estes dois últimos filhos de outro “R”, Ramiro, um homem infiel e violento que a abandonará. Facto interessante é que uma das vizinhas de Jacinta, uma boa amiga, se chama Rosário, outro “R”. Jacinta regressa a Portugal com sessenta e quatro anos, a pedido da própria mãe, depois de a ter conhecido apenas seis anos antes. É nesta fase que mais profundamente Inês Pedrosa começa a desenvolver a sua narrativa que, à primeira leitura, dir-se-á tratar de um livro reflexivo sobre a velhice (p. 198), até porque Lupe, de noventa e cinco anos, me chamou a atenção enquanto leitora (p. 205).
Mas não, não é sobre a velhice; à medida que se vai lendo, outras temáticas se cruzam com os episódios das velhas e das jovens ou da morte, como a fuga das personagens da cidade para o campo por causa do fracasso que parece estar inerente à vida citadina (p. 35). Todas estas temáticas são pintadas com laivos de bom-humor, como o funeral do periquito de Ema de Castro, de oitenta e dois anos, com direito a honras camarárias (p. 42).
É também de salientar que em “Desamparo” os narradores se vão revezando, capítulo a capítulo, cada um contando um bocado da história da grande história que gira em torno de Jacinta e sua família, sendo destes narradores Raul aquele que elejo como o mais profundo de todos, pois são as suas palavras que fazem da obra um excelente recetáculo das reflexões de um homem com cinquenta anos, carregado de desilusões de todo o género, uma personagem que se confessa como tendo o vício da dor.
É neste tom de reflexão que nos surgem diante dos olhos inúmeras perguntas, quase todas sem resposta imediata, como “E terei eu servido para mãe?” (p. 77). Tudo isto matizado com a importância da terra, do território, algo tão primitivo, tão tribal, algo pelo qual vale a pena lutar (p. 81) e que serve igualmente de pretexto para a construção da sensação de incómodo permanente que Inês Pedrosa nos oferece através do quadro de um Portugal, atrever-me-ei a dizer, provinciano e deferente com os políticos corruptos, oportunistas e inoperantes, um Portugal carregado de inúteis que, por exemplo, até tenta impedir a acção do Grande Escritor (p. 255-6), que diz que não concorda que os alunos do ensino básico sejam poupados à literatura.
No contar de histórias das personagens, as suas ligações são-nos apresentadas de um modo fluído mas complexo, pois revelam-se lógicas e tecidas em hiperligação. São estas personagens que nos ensinam que a vida faz parte da morte e vice-versa, aliás “morremos sempre sozinhos “(p. 127), e a morte é o regresso a um lugar feliz. Nesta sequência, é a morte e a culpa que parecem ser a razão da vida de Raul, uma vez que os seus momentos felizes rapidamente ficam cinzentos (p. 195).
Em “Desamparo”, o repensar da vida, a mudança de direção e de orientação da vida, acabam por tornar este livro um livro feliz, de esperança; um livro velado pela necessidade de nos revoltarmos contra o que nos deixa sós, não sós sem os outros, mas sós connosco mesmos, na procura do amor-próprio. Assim, é um livro sobre a vida com todas as suas componentes desesperançadas que vive num Portugal onde sobressai “um heroísmo de improviso que é uma forma de sabedoria”, como é dito na página 310.
Perante este “Desamparo” só posso terminar com a frase que está na página 22 e que diz tudo sobre a obra e, quiçá, sobre aquelas mulheres que nunca baixaram os braços, mesmo que sejam vítimas profissionais ou que tenham ficado encalhadas na glória de há quarenta anos, e cito, comungando: “Eu nunca hei de ser velha; nem sequer aprendi a ser moça”.

Anabela Pinto
28 de Março de 2015

 

 

 
 
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