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Desamparo | Crítica | Miguel Real | Jornal de Letras

 

Dentro de Ti Ver O MarDesamparo – Romance
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 320 páginas, Dom Quixote.
Edição brasileira: 296, Leya
Edição croata: 208, OceanMore

 

 

A paixão conduz a escrita

Personagens fortes, numa história ao mesmo tempo feliz e infeliz.

Desamparo reflete o estado atual de Portugal, um país simultaneamente amado pela sensibilidade das personagens e odiado pela racionalidade analítica dos diversos narradores.

Belíssimo o novo romance de Inês Pedrosa, Desamparo, tão festivo quanto fúnebre, tão cosmopolita quanto nacional, tão cético quanto esperançoso, percorrendo toda a gama de sentimentos humanos, da alegria esfuziante ao fracasso mais atroz, do amor atormentado e obstinado à humilhação nos negócios. Em Desamparo, a história e as personagens entrecruzam se de um modo inextrincável, desconhecendo-se qual a mais importante, se a história, uma síntese dos tempos recentes de Portugal, se as personagens, das mais sólidas e vibrantes que a autora criou. A história decorre na aldeia de Arrifes, Vila de Lagar (lugar inventado, claro) e possui personagens fortes, (i) como as três vizinhas Jacinta, Alice e Rosário, as duas primeiras falecidas, Jacinta doente e levada para o hospital no princípio do romance, desencadeando a sua ação, Alice no final, desamparada, isolada num baldio; (ii) como Raul e os seus dois irmãos, Rafael e Rita; (iii) como Vanessa, assassinada numa dancetaria; (iv) como Clarisse, antiga jornalista desempregada e animadora cultural em Arrifes, que, pelo amor, redime a vida de Raul; (v) como o literato inconstante Pedro Gama Lousada, magnífico retrato de escritor e ativista cultural decadentista encontrado na vida boémia de Lisboa.
São personagens fortes, isto é, cada uma dotada de uma personalidade vincada, totalmente distinta das restantes, e com ação singular no seio da história narrada. As restantes personagens (Joaquim, o dono da funerária Zorro, idosos do Centro de Dia, Gaspar e Cátia, Carla Fontinha, habitantes de Arrifes, funcionários camarários Ema de Castro, o Grande Escritor ressuscitado e o Grande Arquiteto premiado...) compõem, digamos assim, o pano de fundo ou o horizonte social donde se destacam as personagens marcantes, sobretudo Raul.
Trata-se, sem dúvida, da história simultaneamente feliz e infeliz de Jacinta de Sousa e da vida derrotada mas redentora de seu filho Raul. E, com Jacinta e Raul, é, ainda que raramente se descrevam episódios do poder político, da história de Portugal que se trata, sobretudo dos anos mais recentes. Da tenacidade de Raul, que, embora nascido no Brasil, vindo para Portugal para acompanhar a mãe, recusa emigrar; do amor de Clarisse, que aceita emigrar um ano para Berkeley para pagar a parte do Casal da Bela Vista que coubera em herança a Raul e aos seus dois irmãos; da vida de Jacinta levada menina para o Brasil pelo pai Artur, tipógrafo, casada com o galante Ramiro, que a trocou por mulher mais nova, e regressada a Portugal para fazer companhia à mãe Margarida e viver até à morte na casa de Arrifes.
Desde o seu primeiro romance, A Instrução dos Amantes (1992), a paixão comanda a escrita de Inês Pedrosa: paixão gizada em torno de um realismo social participante, prestando testemunho do seu tempo; paixão alimentada pela observação atenta e racional da realidade, na qual, porém, a emoção, o sentimento, a escrita na primeira pessoa do singular comandam a estrutura aparentemente labiríntica das suas narrativas; paixão igualmente na seleção das histórias de vida narradas e no levantamento das personagens principais.
A metodologia de escrita, ainda que emotivamente espontânea, parece residir num conjunto concêntrico de abordagens, isto é, parte-se de um facto nuclear (morte de Jacinta de Sousa; fracasso de vida de Raul, seu filho), ampliado posterior e sucessivamente ao nível local e ao nível da vida do país (neste caso Portugal e Brasil, já que Jacinta viveu e casou no Brasil e Raul aí nasceu). Mais do que tecido labirinticamente, o romance parece assim viver de sucessivos círculos concêntricos, entre os quais, até as derradeiras paginas, o capítulo seguinte concentra e supera os anteriores, arrastando e enlevando a mente do leitor.
Titulo sintético mas muito sugestivo, Desamparo reflete o estado atual de Portugal, um país simultaneamente amado pela sensibilidade das personagens, sobretudo Jacinta, Raul e Clarisse, e odiado pela racionalidade analítica dos diversos narradores. Um país "desamparado" por uma elite político-administrativa tecnocrática, no qual contam mais as boas contas orçamentais do que a qualidade de vida dos seus habitantes.
Com efeito, os últimos capítulos de Desamparo fazem lembrar o final do último romance publicado em vida de Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires, no qual, através da personagem principal, Gonçalo Mendes Ramires, regressado de Moçambique, se tematiza a essência da identidade histórica e antropológica de Portugal, concluindo-se que Portugal é um país que simultânea e paradoxalmente "desampara" e redime os seus habitantes, tanto provocando neles um estado de abandono e abatimento quanto, em outros momentos, os estimula à e lhes concede a salvação.
Um dos melhores romances da já vasta obra de Inês Pedrosa.

Miguel Real, Os dias da prosa in Jornal de Letras (Edição de 18 de Fevereiro a 03 de Março de 2015)

 

 

 
 
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