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FAZES-ME FALTA | APRESENTAÇÃO | AGUSTINA BESSA-LUÍS | JORNAL DE LETRAS

 

Fazes-me Falta

 

 





Fazes-me Falta – Romance.
Edição portuguesa: 226 páginas, Dom Quixote.
Edição Brasileira: 224 páginas, Alfaguara
Senza di Te, Edição Italiana: 255 páginas, Elliot/Scatti.
Du Fehlst Mir, Edição Alemã: 260 páginas, Luchterhand Literaturvlg.
Te Echo de Menos, Edição Espanhola: 245 páginas, Elipsis Ediciones
Still I Miss You, Edição Estadunidense: 298 páginas, Amazon Crossing

 

A cintilação da mortalidade

Gosto de estar aqui a falar de Inês Pedrosa, como mulher de letras e sobretudo como autora dum romance de aprendizagem. O romance de aprendizagem no feminino teve as suas grandes criadoras no século XIX. Foram elas Madame de Stael, George Sand e a Condessa de Ségur. Em todas se encontra a dor da renúncia como uma faculdade particularmente feminina. A mulher persegue a renúncia, como o homem persegue o sucesso. A renúncia é elevada a um dos grandes problemas da humanidade, representa uma aspiração nas manifestações da feminilidade.
Mas o que significa a renúncia para a mulher? Ou antes: o que significa a renúncia, posto que as mais belas situações de renúncia são também obra do homem? O que é que não é obra do homem?
Temos aqui um romance de Inês Pedrosa, (Fazes-me Falta, ed. Dom Quixote) uma história comovente porque não se destina a ser vivida. Pertence à posteridade de cada um, mesmo do leitor e para além dele; a todos os que estão com ele, os que falam e os que se calam.
Em que medida o romance de Inês Pedrosa se inclui no romance de aprendizagem? O romance de aprendizagem, a que Goethe deu voz escrita, é um tratado de formação do indivíduo. Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister desenvolve o tema da harmonia do indivíduo, do esteticismo da arte como forma de vida. A arte de viver a sociedade e de fazer com os outros o que se chama a Humanidade.
O duplo monólogo da pessoa viva e da morta representa exactamente um guia de comportamento. Há nele um idealismo clássico e o lado reflexivo e confessional que tanto agradava a Goethe. Acima de tudo, vemos nele a evolução dos personagens para a aceitação dum destino que afinal eles não capturaram com as suas activas predilecções, com o amor, por puro que ele seja. "O que somos, para além do que vamos sendo?" (pág. 13), pergunta o homem, senhor de todos os seus sentidos, mas homem em formação A voz da mulher morta tem um esplendor que nos surpreende. "Era esta a glória que eu sonhava em adolescente: a de congregar toda a tristeza em volta da minha saudade" (pág. 22).. É um plano ainda de sobrevivência, um reanimar do tempo que está a decompor-se como um corpo sem memória. As mulheres lançam-se no romance de aprendizagem como se perseguissem uma sombra que elas não conhecem bem. Pode ser uma fera no meio dos canaviais, um tigre lento que se escapa mas que pode vir a atacar; ou pode ser um tesouro enterrado na beira dum rio. Quem sai a procurar uma ovelha perdida, acontece que acha o que não esperava, a si mesmo. Rodar em volta de si mesmo como se executasse uma dança maravilhosa.
Porque se escreve? Ou para que se escreve? Tantas vezes me perguntaram isto, que se tornou uma forma de representação teatral responder. Volto a falar de Meister e do seu temperamento, o temperamento do artista: "Dada a clareza do seu olhar, não podia ter estima por ninguém, pois via sempre só as características exteriores das pessoas e introduzia-as na sua colecção mímica". Isto define o artista, para quem "através duma acção e reacção aparentemente estranha, mas absolutamente natural, graças ao conhecimento e à prática, a sua recitação, a sua declamação e gesticulação alcançaram um alto grau de verdade e franqueza, enquanto na vida e no trato ele parecia tornar-se cada vez mais secreto, artificial, até dissimulado e receoso". Este é o retrato do artista, de todos eles e não só o extraordinário Meister, de Goethe.
As coisas mais belas deste livro estão do lado da mulher morta. Como: "deste lado da morte é a mortalidade que cintila" (pág. 38). Não podia ser doutra maneira, porque se trata de aprendizagem e só o que é mortal ensina e procura ser mestre nalguma coisa. Ser mestre em agradar, por exemplo. Quando se escreve um livro entra-se num palco e começa-se a abrir passo ao aplauso. A nossa declamação, a nossa gesticulação alcançam um grau de franqueza tão perfeito que os aplausos rompem na sala. A verdade é o que representamos, não o que somos. No romance de Inês Pedrosa, a verdade é a morta, a dança, a substância da mortalidade que ela traz à cena. "Há um exercício nos sentimentos que não pode ser levado até ao fim" – diz Inês Pedrosa (pág. 131) . É o teatro dos sentimentos. Quando a cena acaba num beijo, num casamento, num funeral, estamos a fazer vibrar a sala, temos seguro o aplauso. Na realidade, tudo fica cada vez mais secreto, dissimulado, longe do espectáculo. A sombra que se persegue não vai dar lugar a um tesouro, somos nós que não se pode levar até ao fim.
Eu creio que o romance da Inês Pedrosa está para além da renúncia tão cara à natureza feminina. A renúncia é ainda uma forma de adular o predador e o amigo. É dar fim a um sentimento, pintá-lo desta ou daquela cor. É o contrário da aprendizagem.
Entramos numa nova era do romance de aprendizagem no feminino. Enquanto que no tempo de George Sand e depois no tempo de Simone de Beauvoir, a mulher pretendia lutar contra todas as formas de miséria, tanto afectiva como espiritual, hoje o romance, de que é exemplo o romance de Inês Pedrosa, tem um outro despertar cultural. A necessidade de amar e ser amada e de ser virtuosa sofre uma certa ofuscação. A depressão nervosa toma o lugar da grande paixão e do estado de insatisfação que identifica a mulher do século XIX ao século XX.
O romance de aprendizagem é, portanto, outra coisa. A busca da perfeição já não é a maneira de se comportar em sociedade, de ser elegante no vestir e no falar, de ser sedutora, mãe exemplar e boa dona de casa. A palavra mulher deixa de ter ressonâncias impudicas e ela deixa de mostrar-se, nas suas actividades, mesmo intelectuais, como se quisesse fazer-se perdoar dalguma coisa. Ela deixa de ser a marionete dos sentimentos propostos pela sociedade, e aparece com a antítese de Simone de Beuvoir, que dizia:
"Não se nasce mulher, tornamo-nos mulher". O certo é que se nasce mulher para o bem e para o mal, ou para ambas as coisas. A educação partilha-se, o sexo interpreta-se, a faculdade de despertar a criatura humana inventa-se.
"Traías-me, traíste-me inúmeras vezes e nunca chegavas a tocar a fímbria da traição" – diz a morta (pág. 62). Ela é um todo, a pessoa impossível de ser dividida, e a sua culpa está nisto. "Com uma seriedade travessa e um aparente entusiasmo", como o jovem Meister, a morta faz o seu papel. Aprendeu tão bem a economia dos gestos e das palavras, que a sua arte atingiu o sublime e, de repente, ganhou distância do seu próprio palco e passou além dos reposteiros, dos rompimentos e dos cenários. Ficou só o livro escrito.
O que temos aqui é o livro escrito. Romance de aprendizagem, sem dúvida. A aprendizagem do pudor, que é uma demência culta da civilização. Toda a civilização é uma demência culta, A feminilidade faz parte dessa demência, ou evasão.
No romance de Inês Pedrosa estamos longe da obscenidade da mulher que escreve. Essa mulher, quase todas as mulheres escrevem por vaidade e falsa luxúria. Cioran tinha uma boa parte de razão quando troveja contra Madame de Stael e George Sand, contra o aviltamento a que elas chegam pensando que se enobrecem. O impudor invade tudo, a usa aventura espiritual nada vale. Mas não é tanto assim. No romance de aprendizagem há muitas vezes tagarelice e desordens inúteis. Mas há também um valor concreto que apela à conclusão que só o leitor lhe pode dar. Inês Pedrosa escreveu Fazes-me Falta. O que isto quer dizer é assunto para pensar e talvez para pôr a palavra fim no romance, à nossa própria conta, a do leitor.

Agustina Bessa-Luís, 30 de Abril de 2002. Texto de apresentação do livro, no Lux, em Lisboa, depois publicado no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias.

 
 
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