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FICA COMIGO ESTA NOITE | APRESENTAÇÃO | RUI ZINK

 

Fica Comigo Esta NoiteFica Comigo Esta Noite
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 136 páginas, Dom Quixote
Edição Brasileira: 160 páginas, Planeta do Brasil Adquira este livro.

 

 

Delicadeza e exactidão

"Parece-me que a ausência de memória é a grande questio do nosso tempo" (p.29).

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A Dom Quixote está de parabéns. A Teolinda Gersão, a Cristóvão de Aguiar, a José Eduardo Agualusa, só para dizer três bons nomes, junta-se mais um livro de contos de primeira água. Os contos de Inês Pedrosa são contos de romancista, como por sinal também os dos autores referidos. Os contos de romancista têm geralmente um sabor diferente, porque vêm de quem está habituado a trabalhar as palavras em forma de grande rio. Não são necessariamente melhores que os de poetas ou "contistas puros", todos sabemos aliás que o divino espírito santo desta forma brevis foi, no século XX, Jorge Luís Borges, que nunca se meteu pelo romance adentro.
Estou apenas a dizer que são diferentes. Se eu quisesse apontar em quê propriamente, diria que os contos de contistas são cristais acabados, diamantes negros, e os contos de romancista tendem a ser fragmentos de um cristal maior, como se, mais do que contos, de capítulos de livro se tratassem. O único "contista puro" que partilhava desta qualidade romanesca era, que me lembre, Raymond Carver, mas a explicação está talvez em que ele tinha uma enorme admiração por Tchekov, que espraiava a vida como se nem peça houvesse. Exemplo claro disso são os contos de Tenessee Williams que, esses, dariam quase todos peças, como de resto deram, e peças de três horas.
O que quero dizer é que Inês Pedrosa está em boa companhia, tanto na editora como no mar mais vasto da literatura tout court, e que esses autores também estão em boa companhia com a publicação deste livro. Não é coisa pouca, nos tempos que correm.
E também não é coisa pouca, nos tempos que correm, um bom livro ter sucesso de público. Acredito que tal vai acontecer, tal como já aconteceu com o seu romance anterior.

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A Inês é uma mulher de causas, só que não é uma profissional de causas, nem as suas causas são profissionais. Tem dias e as suas inclinações não seguem um mapa regular, antes seguem o mapa, muito próprio, da sua sensibilidade, inteligência e, para citar outra escritora feminina, bom gosto. Indigna-se com o 11 de Setembro, o que não significa um amén à América – a prova é que apoiou, e da forma que mais dói, a vinda a Portugal de Robert King, um homem que passou trinta anos nas prisões americanas por um crime que não cometeu. E esse apoio, anónimo, dá-o com um desprendimento e uma generosidade que não vi em partidos de esquerda. A Inês não tem papas na língua. Aliás, que eu saiba, escritor nenhum que se preze tem papas na língua, mas o nosso sempre foi um país de peculiaridades.
A Inês tem sido também, voluntariosa mas involuntariamente, a líder de um movimento, no qual tenho a honra de me incluir, de apoio a Maria do Céu, ainda hoje presa, condenada a oito anos pelo crime hediondo de auxiliar mulheres do Norte a abortar, e de ter obtido ilicitamente medicamentos para lhes minorar o sofrimento. Também aqui a esquerda-machista-leninista achou por bem macaquear a direita-machista-legalista e ter pena, sim senhora, das vítimas que abortavam, mas, que horror, não solidariedade com a infame bruxa capitalista que fazia lucro a prestar-lhes esse serviço a um só tempo humano e desumano nas melhores condições possíveis. Isto mostra bem a imagem que esses cavalheiros têm do lugar da mulher: vítima infeliz e explorada sim, mas se faz lucro já é bruxa digna de ser enviada para a fogueira ou , pelo menos, condenada ao dobro da pena que cumpre o homem que matou, num acto de compreensível desvario, a ex-mulher e o namorado desta. Oito anos para a criminosa que interrompia gravidezes involuntárias, quatro anos (dois por cada vida) para o homem que teve um xilique assassino.
O que tem isto a ver com os contos? Para mim, tudo. A arte não tem de ser moralista mas também não tem que ser ceguinha. A arte mexe com as nossas contas à vida, as colectivas e as individuais, e isso é, para mim, uma questão moral. Esse é também o cerne do trabalho literário. Fica comigo esta noite é um título que aponta para uma leitura intimista, mas nem tudo são rosas, senhores, nos doze cantos deste livro. O último conto, nomeadamente, é o de uma mulher, europeia, russa, bósnia, ucraniana ou outra coisa qualquer, que já não sabe, à letra, de que terra é. Ou, como dizia com muito mais beleza a minha avó, que terra é. "Europa, plano nocturno" é uma cavalgada russa, rusticana, uma noite europeia interminável. Se Milena, a amada de Kafka, escrevesse, andaria talvez por estas águas. Já o penúltimo conto fala de um homem, por acaso por português mas a viver em Nova Iorque, que...
Bom, não esperam que vá contar tudo, espero.

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No princípio e no fim estará sempre a voz. O escritor dá voz ao seu tempo e, nalguns casos, empresta a sua voz a outros, a personagens de papel que, se para tanto ajudar o engenho e arte, se tornam mais reais, nos tocam mais, do que muita gente de carne e osso.
A voz de Inês Pedrosa é ao mesmo tempo despachada, desempenada e intimista. Tem sal. Outra das coisas que gosto na escrita da Inês é que é informada, é culta, sem fazer disso um abajur decorativo. Nos momentos mais líricos, e tem muitos, a Inês é capaz de ser prosaica – e essa é, para mim, a marca de duas coisas que valorizo muito: a dignidade e o pudor. Não é uma voz choramingas nem delicodoce, é uma voz feminina, sim, mas sem os rodriguinhos que homens e mulheres tantas vezes imaginamos, por engano, devem ser apanágio da feminilidade.
Mas para quê buscar palavras se a definição do seu estilo está mesmo no início de um seu conto, "Um amor na cidade", por sinal o mais antigo dos doze que compõem este livro? É a primeira frase do conto, e é uma frase composta por duas palavras: "Delicadeza e exactidão".
Inês Pedrosa vive a coisa literária mas não se deixa enredar por ela, a erudição que tem guarda-a para si, sabe que somos anões aos ombros de gigantes, aprendeu muito, a ler e a conviver com escritores, não tem nada a esconder mas não faz questão que saibamos o quanto é culta e atenta ao mundo.
Ela reclama-se da escola de Agustina e Vergílio Ferreira – eu diria que de Agustina retém o espírito, mas não a forma, e, de Vergílio, talvez a percepção de que, no humano, o que vale a pena transcende os acidentes da circunstância, embora seja muitas vezes forçado pelas circunstâncias. É o caso do conto que abre o livro, intitulado "Só sexo" e que, como é óbvio, fala de tudo menos de sexo. Só que a narradora desse conto não consegue usar essa outra palavra, que eu próprio não sei (nem quero saber, só estragava a coisa) qual é.
"Só sexo" – falai em títulos amargamente irónicos. Ao que parece, algumas leitoras terão já confidenciado à Inês que o conto reflecte as suas vidas. E eu posso informá-la de que não é só com as mulheres que aquilo se passa. Nós somos todos um bocadinho para o complicado e a arte de saber viver, a nossa própria sobrevivência enquanto espécie, passa, creio, por aprender a lidar com isso, com a complicação, a perda, com o desencontro e o eventual reencontro, nem que seja para, enfim... só sexo.
Mas adiante. Estávamos a falar de quê? Ah, sim, da famigerada relação entre a arte e a vida.
Também em relação ao extraordinário conto (porque está lá tudo) "A cabeleireira" já perguntaram à Inês: "Olha lá, inspiraste-te no X para fazer aquele misto de opinion-maker, marido violento, amante dos futebóis como convém a um bom neo-marialva, corajoso na via pública e cobarde na via afectiva?" Não vem mal nenhum ao mundo destas pequenas malícias e intrigas que aquecem os nossos serões de inverno. E, afinal de contas, o quotidiano está cá para isso mesmo, para nos inspirar. Mas é óbvio que, se a mulher e o homem daquele conto funcionam, e funcionam mesmo, é porque batem mais fundo do que a pequena referência concreta. Porque, na transmutação alquímica a que toda a arte aspira, a vidinha faz parte do acessório, e o conto busca a essência, busca captar um "ar do tempo", identificar pela música das palavras o campo de forças em que vivemos precisamente para, através desse acto redentor que por vezes a leitura consegue ser, nos libertarmos da camisa de forças que nós próprios (com a nossa mesquinhez, ignorância e estupidez natural) tecemos.
Fica comigo esta noite é, como o título indica, quase todo constituído por contos intimistas, histórias do silêncio, de quem não consegue expressar o que tem para dizer, ou só o consegue fazer a outros que não às partes interessadas. Neste livro, a Inês empresta a sua voz a mulheres, mas não só. Como já disse, as personagens estão quase sempre em perda, ou em desencontro, ou na expectativa do reencontro. Mas raramente estão conformadas com a sorte que lhes coube – ou então tiveram, pelo menos, um momento, um instante que seja, em que quebraram esse contrato secreto e ignóbil, porque desigual, que as condenou a priori a serem vítimas profissionais.
Este é para mim um ponto importante. Pantagruel era maior que a vida. Neste contos, a vida tem tendência para devorar as pessoas, à semelhança do que acontece com o nosso tempo. E é justo, porque um escritor responde ao seu tempo, com as únicas armas decentes que tem: a sua voz e algum sentido da música, da forma, das coisas. Há no entanto algumas personagens que resistem. Há, nos escombros desta vida que está difícil para todos, sobreviventes. E um conto que até fornece algumas técnicas de resistência é "Conversa de café", por sinal o mais divertido de todos. Esta narrativa picaresca na boca de uma modesta esposa e mãe devia, na minha opinião, ser lido por todas as famílias agora que estamos a iniciar essa gesta patriótica que é o Euro 2004: digo apenas, e cala-te boca, que se trata da bonita história de um jogador de futebol alegremente partilhado por pai, mãe e filha, só que de diferentes modos por cada uma das partes interessadas.

4
Uma apresentação de um livros de contos, em Portugal, deve sempre começar por uma pequena prelecção teórico-prática à volta desse objecto estranho não identificado chamado conto. Eu não vou quebrar a tradição, só que, como tenho a mania da diferença, faço-o no fim. Ora, por tradição, dizem os especialistas, o conto em Portugal não tem grande sucesso editorial – as pessoas preferem romances. O que é paradoxal, pois como sabemos a capacidade de concentração da maioria dos portugueses vai pouco além do parágrafo – é até por isso, suspeito, que alguns escritores fazem parágrafos longos, na esperança (vã) de algum pedaço dos seus livros serem efectivamente lidos.
As próprias expectativas das editoras são de que o livro de contos tenha menos sucesso que um romance escrito pelo próprio autor. Mas porque será assim? E, atrás de uma pergunta vem sempre outra: terá que ser sempre assim? Espero que este livro permita provar que o contrário também é possível. Os contos do romancista permitem revisitar a voz do autor em doses mais pequenas, e permitem também, no caso da Inês Pedrosa, ver em que direcções irá ela, provavelmente, no seu próximo romance. É o que me apetece dizer sobre estes pequenos doze presépios que encontramos em Fica comigo esta noite: há aqui prenúncio de romance. E há, sobretudo, uma voz poderosa já bem identificável pelos seus leitores.

Rui Zink
Apresntação de Fica Comigo Esta Noite, 10 de Dezembro de 2003. Texto depois publicado no Jornal de Letras

 
 
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