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O Processo Violeta | Crítica | Nuno Júdice | Colóquio/letras

 

Dentro de Ti Ver O MarO Processo Violeta – Romance
de Inês Pedrosa
232 páginas, Porto Editora

 

 

O Processo Violeta, convém dizer com toda a simplicidade, é um romance, com uma estrutura narrativa própria, um mundo de personagens que tem como fundo uma sociedade complexa e problemática, como é a do Portugal do fim dos anos 80, temas pertencentes à esfera do polémico, como a violação, a pedofilia ou o mundo das touradas. E quando chegamos ao fim verificamos nada disto interferir com aquilo que, em princípio, é próprio do romance: a construção de um mundo obediente à lógica narrativa, onde o que lhe é exterior, da moral à verosimilhança, implicando a fidelidade suposta a um mundo real, ou o que quer que isso seja, pouca importância tem. Estou a ver já uma objeção: então num romance que trata de coisas tão graves como, por exemplo, a pedofilia ou a violência sobre as mulheres (violação) ou sobre os animais (tourada) não há uma tomada de posição? Não é uma obra nascida do que é tão frequente nestes tempos, sendo uma literatura de causas, engajada no politicamente correto, na denúncia de injustiças ou problemas sociais ou morais? A resposta que pode tranquilizar os que gostam de romance, de ficção, de literatura, no sentido pleno da palavra, é esta: o que está aqui é um romance, esqueçam a atual tendência para um neorrealismo global, obedecendo às ideologias hoje dominantes, como é o caso das de género, de multiculturalismo, de anticorrupção, contra o assédio, etc. Obviamente, tudo isto se encontra ao longo do livro, quando estamos num período histórico em que já se encontram, de forma larvar, mas ainda no campo do não-dito, todas as situações que hoje fazem parte da primeira página dos jornais.

E este é outro dos aspetos importantes do livro: o mundo da imprensa e a génese dessa passagem dos faits-divers do campo da rubrica que antecedia a página dos anúncios designada por «Sociedade» para as primeiras páginas mediáticas. Hoje tudo é Social, do futebol ao crime, da política ao desporto; e esse mundo em que o jornalista podia ser um narrador, ao fazer a notícia de um crime, de uma festa ou de uma eleição de misses, entrou num campo onde tudo é narrativa, isto é, tudo é ficção, o que significa que, ao lermos um jornal, estamos perante encenações que instalam, desde o princípio, esta dúvida: isto é verdade? E como, na ficção, a verdade depende da mestria com que o texto é narrado, também hoje, no mundo nascido dessa técnica jornalística que, neste livro, tem em O Insubmisso um bom exemplo; a verdade depende da arte narrativa do jornalista e não do facto em si, o que significa que toda a verdade é mentira, tal como o seu contrário.

Um crítico desatento poderia ser levado a duvidar da adequação do livro à realidade concreta do Portugal de fins dos anos 80, mas isso seria cair na ilusão que o texto romanesco inspira — a de estarmos, de facto, a ler o próprio Portugal de fim dos anos 80 — e decorre da armadilha lançada por Inês Pedrosa: a de nos encontrarmos dentro daquele género do roman à clef, que vem do século XVIII, ou mesmo antes (pensemos na Menina e Moça), e ainda terá os seus cultores nos nossos dias. Há essa tentação, sem dúvida; mas pôr um nome concreto à frente das personagens é um exercício de voyeurismo que
pouco interesse terá. A Violeta é a Violeta e, para o prazer e o entendimento do romance, pouco importa virem dizer que existiu, que esteve nalguma primeira página, etc. Obviamente, Inês Pedrosa ter-se-á inspirado na sua experiência jornalística e no Portugal desses anos 80 para escrever o livro; mas confesso que entrar nesse jogo de enganos é uma distração destinada a desempregados da imaginação.

Um dos pontos que percorrem o livro, por outro lado, é a relação das personagens com um mundo cultural. O que Flaubert fez com a Madame Bovary que lia Paul et Virginie e Walter Scott surge agora quando põe Ana Lúcia, vítima de violação, a pensar no Cão Andaluz, no Sade ou no Pasolini, para relativizar essa terrível prova. Estamos perante o mesmo efeito de intertextualidade que encontramos em Flaubert para o leitor situar essa realidade não no mundo concreto, mas no espaço cultural que dá um acréscimo de literatura ao texto, ou seja, dizendo ao leitor que aquilo que tem pela frente não é a realidade em si mas uma realidade no ecrã da ficção. Dir-me-ão que são coisas elementares, mas nem por isso é irrelevante tomar nota do que lemos para ouvir o literário desta ficção, e não o literal.

Quanto à narrativa, O Processo Violeta cruza três espaços e três mundos no que podemos chamar a sua intriga: a amizade entre duas professoras de uma escola dos subúrbios — Violeta, que tem uma relação amorosa com um aluno menor de origem cabo-verdiana, e Ana Lúcia, violada por um outro aluno também menor —; o mundo da imprensa à procura de notícias que vendam, como é o caso da redação de O Insubmisso que encarrega Clarisse de fazer uma reportagem sobre o processo de Violeta, tendo por fundo o ambiente dos jornais no pós-25 de Abril; e o mundo da tauromaquia, a partir da personagem do cavaleiro Nuno Delgado, que reconhece a paternidade do jovem cabo-verdiano mas acaba por abandoná-lo, tal como à sua mãe, a emigrante cabo-verdiana Paulina.

Estamos no mundo anterior a todas as situações politicamente corretas da atua-lidade, incluindo a diferença de géneros e de raças, mas o romance não precisa de nada disso para se apresentar como uma revisão da Cartilha do Marialva, de Cardoso Pires, retirando ao masculino o seu domínio absoluto sobre o feminino. Apesar dos traços viris do jovem que mantém a relação com a professora, não obstante os interditos, e do cavaleiro que nunca perdeu a dependência em relação a Paulina, as figuras masculinas não se afirmam perante a força das mulheres, de que apenas Ana Lúcia, a vítima da violação, revela maior fragilidade.

E não será por acaso que um livro, remetendo para a mitologia através da história de Eros e Psique lida na sua abertura, termine com a luta entre o homem e o touro, esse animal que na mitologia é uma das metamorfoses de Júpiter, usada por ele para possuir Europa. Ficamos na dúvida sobre qual o vencedor do combate, após a explosão do «feixe de luz e carne» que sucede à avançada do cavaleiro, feito minotauro, sobre o touro, na praça de touros em que Pai (o touro) e filho (o Minotauro) se defrontam. E será este enigmático final um dos aspetos maiores de um livro resistente a leituras fáceis, dando-nos uma outra visão do mundo em que vivemos à luz de Édipo.

Estamos perante uma obra que coloca toda uma série de questões sem nos pressionar a tomar uma ou outra direção, sem nos fazer pensar numa intenção de «denúncia» social, sem entrar em qualquer esquema de pensamento predefinido. É esta uma grande qualidade porque, de facto, nos coloca num espaço puramente literário; e é por isso que a leitura se faz colocando cada leitor como intérprete do que a obra tem para oferecer, de acordo com tuna liberdade de interpretação absolutamente indispensável a esse prazer que tiramos de uma leitura. E para isso contribui igualmente um outro aspeto: a diversidade de universos e de personagens, e a articulação entre eles, de acordo com uma arquitetura perfeitamente desenhada, onde não há elementos que poderiam parecer fruto do acaso ou de um erro de cálculo.

E outro dos pontos a destacar neste livro é a forma como as personagens ganham uma dimensão humana que nos permite vê-las e compreendê-las, sobretudo Violeta e Ildo, como não podia deixar de ser, mas também Paulina, que será talvez uma das figuras mais fortes, por todos os motivos, do romance. Muitas razões, portanto, para O Processo Violeta ser uma das obras que vão ficar como marco decisivo na maturação da escrita de Inês Pedrosa.

Nuno Júdice. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 202, Set. 2019, p. 247-249.

 

 

 
 
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