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O Processo Violeta | Crítica | Agripina Carriço Vieira | Jornal de Letras

 

O Processo VioletaO Processo Violeta – Romance
de Inês Pedrosa
232 páginas, Porto Editora

 

 

O fim do tempo das utopias

Em O Processo Violeta, a pretexto do relato da relação amorosa, condenada pela sociedade e punida pela justiça, entre uma professora, Violeta, e Ildo, o seu aluno, um adolescente de 14 anos, Inês Pedrosa revisita o Portugal dos anos 80. É um país que abraça efusivamente os primeiros tempos de democracia, enlevado num sentimento de liberdade, que parece tornar plausível a inexistência de interditos ou preconceitos sociais, circunstâncias que serão desmentidas pela história de Violeta e Ildo.
É sob o signo da dualidade que o romance se constrói, paradigmaticamente representada pelo nome da protagonista feminina que dá título ao livro. Uma leitura do Dicionário dos Símbolos (Chevalier & Gheerbrant) desvenda-nos as conotações da cor violeta, cor da temperança, criada da junção do vermelho telúrico e do azul celestial, sendo também a cor do segredo e da transformação, características presentes ao longo de todo o entrecho. A tensão dual prolonga-se em diferentes níveis do texto, inscrevendo-se quer na arquitetura do romance (composto por duas partes desiguais intituladas 1 - Menoridade e 2 - Maioridade), quer nas histórias narradas (à relação consentida e desejada de Violeta com um aluno de 14 anos, opõe-se o drama de Ana Lúcia violada por um aluno de 14 anos), quer ainda na construção das personagens principais (a passagem do tempo, com o seu cortejo de experimentações e sentimentos, produzirá transformações radicais na existência de Ildo, Violeta e Clarisse, tornando-os outros). Mas é ao nível da construção diegética que o movimento pendular assume maior relevância.
O romance apresenta uma arquitectura discursiva que vai beber às técnicas cinematográficas, desdobrando-se o entrecho em planos sucessivos, a que correspondem histórias distintas, protagonizadas por personagens diferentes. Com efeito, a efabulação oscila entre a narrativa do romance entre a professora e o aluno e das personagens que em torno deles gravitam e textos de natureza histórico-referencial que, parecendo estar ao serviço da defesa de uma tese, apresentam histórias de outros casos de adultos e adolescentes que ao longo dos tempos experienciaram sentimentos idênticos, paradigmaticamente representados na paixão proibida entre Eros e Psique narrada no incipit: "Eros, deus do Amor, começou poi seduzir Psique a mando da mãe, Afrodite, deusa da beleza, mas apaixonou-se pela cativante mortal e recusou-se ao desígnio materno de a destruir" (p. 11).
Ao longo dos 30 capítulos do romance vai-se desenhando um retrato desapiedado e ponteado de humor da sociedade portuguesa, liminarmente descrita na seguinte passagem: "A estatura do português permanecia mediana, o seu embrulho discreto – entre o preto, o cinzento e o azul-escuro –, os seus hábitos frugais, os seus consumos culturais diminutos e o seu humor semelhante ao clima: temperado, propenso a brisas outonais e arredio a calores ostensivos. Deprimido sem drama, folgazão sem euforia, desenrascado em caso de necessidade absoluta, paciente e sinuoso nos imbróglios do quotidiano" (p. 206). O olhar da narradora, que assume em múltiplos passos uma dimensão autoral, observa com acuidade algumas classes profissionais – professores, políticos, toureiros –, mas é sobretudo no mundo do jornalismo que a sua atenção se centra, ao acompanhar a história de Clarisse Garcia, a jovem jornalista responsável pela reportagem do "processo Violeta", pretexto diegético para a descrição de um universo em que o idealismo se confronta com a realidade do número das vendas e das influências dos vários poderes.
Mais do que a história dos amores entre uma professora e o seu aluno, o romance de Inês Pedrosa questiona, de modo crítico e irónico, a nossa identidade coletiva, num tempo em que o país vivia com entusiasmo os primeiros anos de liberdade, que rapidamente dão lugar ao desencanto e à decepção trazidos pelo novo com travo a velho, dissipando-se assim "o tempo iluminista das utopias"

Agripina Carriço Vieira
in Jornal de Letras, 13 a 26 de Março de 2019

 

 

 
 
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