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Desnorte | Entrevista | Luís Ricardo Duarte | Jornal de Letras

 

Dentro de Ti Ver O MarDesnorte – Contos
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 194 páginas,
Dom Quixote
PVP: 14,90 euros

 

Romance cubista

Não é um romance, mas poderia ser. Inês Pedrosa vê nos contos que compõe o seu último livro uma arquitetura romanesca, desenvolvida em três ciclos, como se fossem partes de um todo. São fios invisíveis que percorrem estas histórias sobre relações humanas, relações eróticas e também relações com os nossos fantasmas. Desnorte, que chega às livrarias no próximo dia 22, marca o regresso da escritora à recolha de contos. 13 anos depois do livro Fica Comigo Esta Noite.

Jornal de Letras: O que determinou este regresso ao conto?
Inês Pedrosa: Não foi propriamente uma determinação. Nos intervalos dos romances, ou às vezes mesmo no meio deles, vou escrevendo contos. Ha cerca de um ano verifiquei que tinha unia série de contos que pareciam conversar entre si. Depois de reler e retrabalhar cada um deles, organizei os em livro. Ficaram alguns de fora, porque me pareceu que seriam dissonantes neste livro, que para mim tem uma coesão interna e uma estrutura romanesca.

Em que sentido?
Quando os reli, pareceu-me que os unia uma sensação de precipício: sendo histórias muito diversas, em todas encontramos personagens confrontadas com o fim de um mundo conhecido e o início de outro que ainda não se descortina. Por isso dei ao livro o título de Desnorte – que é o título de um dos contos, mas que me parece retratar o ambiente geral do livro. Na verdade, leio este livro como uma espécie de romance cubista: o primeiro conto – Voz – funciona na minha cabeça como um prefácio, descrevendo um processo silencioso de crescimento, com os sonhos e os medos que o acompanham. Depois, há uma sequência de histórias sobre relações familiares ou de amizade rasgadas ou esgarçadas, a que se seguem histórias centradas na atração erótica, e por fim outro grupo em tomo dos fantasmas da glória e do esquecimento. Como se o livro fosse composto por três ciclos de narrativas cujos temas se sobrepõem, nas zonas de fronteira entre esses ciclos. Os temas deslizam e tocam-se, nada é estanque nem definido, procurei precisamente dar a ver essa contaminação entre sentimentos, pensamentos e impulsos só aparentemente feitos de matérias distintas. Só três são absolutamente inéditos, e há um outro que foi publicado numa revista espanhola, mas todos os que não o são foram completamente reescritos – porque, em alguns casos, já tinham sido publicados há muitos anos, e, na releitura, senti que precisavam desse trabalho. É bom deixar os textos repousar. Pensar na respiração particular de um livro altera o próprio modo de ler – como se cada conto passasse a ser também uma personagem, quando passa para livro.

Inês Pedrosa de regresso ao conto

Qual a sua relação com o conto?
Gosto da intensidade e da rapidez. O conto oferece um ângulo de visão muito específico. Para mim, significa liberdade e experimentação. Num romance, a arquitetura – por mais arrojada que seja – limita. Gosto dessa limitação, desse trabalho paciente e enlouquecedor de construção, mas, talvez por isso mesmo, preciso de um contraponto. O conto responde a uma inspiração do momento; é mais parecido com a poesia. E é de uma exigência muito aguda: um romance aguenta quebras de ritmo, tem arcaboiço para absorver muitas falhas. O conto não: cada palavra conta, cada desafinação vibra.

E o que inspira um conto?
Uma história, uma frase, uma imagem, uma ideia que surge com uma autonomia própria... Pode ser qualquer uma dessas coisas, ou várias delas em conjunto. No caso deste livro. Mar Aberto, por exemplo, nasceu de uma notícia que li no jornal, há muitos anos, sobre uma menina que foi retirada ao pai, que a criara sozinho, porque a mãe a abandonara em bebé. Só à segunda vez a polícia conseguiu arrancar a garota dos braços do pai, e mesmo assim teve de ser assistida no hospital. Dois ou três dias depois escrevi este conto, ao qual acrescentei os livros como fio de união entre pai e filha. No conto, o pai é um pescador que decide vencer o analfabetismo para poder ler à filha pequena, e é através dos livros que lhe vai enviando que mantém a relação com ela. Outro exemplo: Dar à Luz, um conto sobre escritores frustrados, nasceu de uma frase que ouvi há décadas, curiosamente no próprio Jornal de Letras, quando eu trabalhava aí, creio que em 1987: um dia entrou na redação, de rompante, um jovem com um manuscrito na mão, pôs-mo em cima da mesa e disse-me que queria que eu lesse e lhe dissesse se o seu romance seria "vendável". Fixei a história e a conversa, volta e meia lembrava-me dela – até que um dia, mais de 20 anos depois, a escrevi – ampliando-a e transfigurando-a, numa muito pessoal homenagem a Camilo Castelo Branco. Às vezes os contos demoram a desenhar-se. Os outros partiram ou de personagens, ou de situações, ou de sonhos, de uma ideia que vem não sei de onde.

Em alguns, ecoam temas literários, inclusive personagens de grandes romances. No conto, gosta de dialogar com a obra de outros autores?
Sim; no conto e no romance; em A Eternidade e o Desejo atrevi-me a interpelar declaradamente o Padre António Vieira, e em todos os outros romances há diversas referências a livros, filmes, pinturas ou composições musicais... Vejo as artes como uma conversa para lá do tempo, sempre gostei de livros que conduzem diretamente a outros livros, tal como do diálogo com o universo da imagem. Escrevi uma novela em torno de um conjunto de fotografias (de Maria Irene Crespo), e uma novela fotográfica a quatro mãos com Jorge Colombo. Desta vez pedi a Gilson Lopes que ilustrasse este livro, e estou muito feliz com os desenhos a bico de pena que, em meu entender, acrescentam outras perspetivas, conduzem a outros simbolismos e conseguem surpreender-me quer pelo seu lado onírico, quer pelo seu caráter irónico.

Depois de um romance intitulado Desamparo, um livro de contos Desnorte. São testemunhos do pessimismo da escritora?
Creio que não, porque eu sou urna optimista furiosa, ou seja, alguém que, existencialmente, não se resigna e que se diverte a tentar deixai o mundo um pouco melhor do que o encontrou. Não entendo a escrita de ficção como um testemunho pessoal, mas como uma tentativa de dar voz tanto ao desespero como à infinita capacidade de regeneração do ser humano. Claro que, como dizia Duras, só podemos escrever seriamente sobre aquilo que conhecemos - mas aquilo que conhecemos é sempre maior e, sobretudo, mais obscuro do que o que racionalmente sabemos. Personagens e enredos são hipóteses de clarificação de algo que nem para mim é claro. Se eu já soubesse o que ia escrever, antes de o fazer, creio que perderia o interesse pela escrita. Acresce que aquilo sobre que se escreve é iluminado pelo próprio tecido da escrita: não há a forma isolada do conteúdo; o valor, a verdade, a justeza ou a beleza do que se diz reside no modo de dizer, no trabalho da linguagem. Que, felizmente, vai sempre além do que sabemos, e, também felizmente, nunca atinge uma sabedoria inteira. Por isso continuo a escrever, na busca incessante da tal palavra redentora que serve de rastilho do belíssimo Para Sempre, de Vergílio Ferreira. Essa palavra não existe, e isso permite-nos continuar à sua procura.

Entrevista a Luís Ricardo Duarte, Jornal de Letras, 17 de Fevereiro a 01 de Março de 2016

 

 

 
 
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