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Desamparo | Crítica | António Simões | Jornal A Bola

 

Dentro de Ti Ver O MarDesamparo – Romance
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 320 páginas, Dom Quixote.
Edição brasileira: 296, Leya
Edição croata: 208, OceanMore

 

 

Com Maracanã e Fla

Desamparo de Inês Pedrosa tem Brasil e tem futebol mas é sobretudo a radiografia de Portugal hoje.Tudo começa, simbólico, num desmaio.

Desamparo, da Dom Quixote. Desamparo de Inês Pedrosa é um retrato fiel de Portugal na atualidade – onde há a crise e a crise não é só económica...

Talvez fosse difícil descobrir frase que sintetizasse tão bem o encanto que este Desamparo tem como a de Clarice Lispector que Inês Pedrosa lhe pôs em epígrafe: «Agora conheço o grande susto de estar viva, tendo como único amparo exatamente o desamparo de estar viva.»
"O título surge porque a palavra desamparo brilhou em mim nessa frase. Achei-a adequada aos nossos tempos. É uma palavra que tem lá dentro tristeza, solidão, insegurança, mas também desafio" (revelou a escritora a José Fialho Gouveia, no Diário de Notícias).
No Jornal de Letras, Miguel Real levantou outros véus ao Desamparo da Inês, achou-o "belíssimo":
"Tão festivo quanto fúnebre, tão cosmopolita quando nacional, tão céptico quanto esperançoso, percorrendo toda a gama de sentimentos humanos, da alegria esfuziante ao fracasso mais atroz, do amor atormentado e obstinado à humilhação dos negócios."

Começa, filosófico, assim: "Um silêncio em bruto, como se o torno do mundo não tivesse ainda começado a rodar." e logo se percebe que há nesse seu começo um desmaio, o desmaio de Jacinta, no pátio da casa da aldeia de Arrifes:
"A mulher caiu perto da porta, longe das duas árvores do quintal, sobre a laje ardente, inundada de sol"...

No Maracanã, a ver o Flamengo

No chão, sob calor aterrador, correm-lhe pensamentos vários pela cabeça – do desejo de ser salva da falência do corpo ao desejo de rever Raul, o filho pródigo que é mais uma metáfora de um Portugal sombrio, desanimado, pessimista. Ela, a Jacinta, fora levada pelo pai do colo da mãe para o Brasil aos três anos e regressara para a conhecer (e amparar...) 50 anos depois e Desamparo é a sua saga, mais do que a sua saga. Ela diz:
"Amei um homem apenas. Ramiro sofria de falta de pai como eu de falta de mãe. As faltas partilhadas são o que mais consolida a intimidade entre as pessoas"… e a páginas tantas lê-se:
"Na separação, só Ronaldo, o filho mais velho de Irene, acompanhou o meu pai; Ramiro ensinara-lhe o ofício de vendedor e as enciclopédias de Direito foram dando lugar a fichas de cozinha e livros de receitas. O velho limitava-se agora a supervisionar as vendas à distância. Trocara Campos, a terra da mulher, por Cabo Frio, cidade marítima que lhe lembrava o movimento do Rio e as águas de Copacabana, só que mais limpas. Voltar para o Rio, nem pensar, fazia lhe confusão. Excepto quando Rafinha insistia e pagava as passagens para que Ramiro – acompanhado por Ronaldo, que nunca largava o pai, e imitava as roupas e costumes do velho, os penteados de outros tempos, as calças vincadas – fosse com ele ao Maracanã ver uma ou outra final do campeonato com o glorioso Flamengo. O clube de futebol servia de catalisador emocional entre aquele pai e aquele filho que agora já não tinham nada em comum."

É, é disso também, da falência de valores e sentimentos que trata o Desamparo – o Desamparo onde, através de escrita inteligente e plena de humor, Inês Pedrosa cria, numa aldeia, um universo singular em que se cruzam personagens e histórias de vários continentes, emigrações e imigrações de ontem e de hoje, seres solitários e escorraçados que procuram outras formas de vida, tentando, todos, no fundo, sobreviver à depressão, sobretudo à económica...
Por lá passa furtiva (ou não...) uma tirada de Passos Coelho em mensagem de Natal – e a visão perturbante, de Eduardo:
"o problema de fundo do país é o analfabetismo moral"
mas passa mais, tudo o mais que o Desamparo tem: o amor, a traição, o poder, a inveja, o ciúme, a amizade, o crime, o medo, a vingança, a morte...
E nessa radiografia que se vai fazendo assim desse país aos solavancos, desse tempo aos destemperos, há uma jornalista que deixou de sê-lo – e deixou de sê-lo por portas travessas, a Clarisse, que descobre
"a sensação de que há espíritos de várias épocas que se repetem e às vezes se cruzam e se reconhecem"...
a Clarisse que se descobriu a aprender, poética, que
"a capacidade de voar através da noite da dor importa bem mais do que a experiência"
e é através dela (ao lado dela...) que, de súbito, se começa a ver que mesmo nesse Portugal a esfrangalhar-se em austeridades e corrupções (ou pior...) pode haver uma linha no horizonte a abrir se em esperanças – e talvez a verdade esteja no murmúrio de Raul:
"Este país que se diz triste é afinal um lugar de consolação…"

António Simões, "A Bola de Estilos" in Jornal A Bola, 25/02/2015

 

 

 
 
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