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Desamparo | Entrevista | Luís Ricardo Duarte | Jornal de Letras

 

Dentro de Ti Ver O MarDesamparo – Romance
de Inês Pedrosa
Edição portuguesa: 320 páginas, Dom Quixote.
Edição brasileira: 296, Leya
Edição croata: 208, OceanMore

 

 


Vidas (des) amparadas

Muitos escritores, ensaístas, artistas e uma mão cheia de obras. Em fevereiro, é tempo de rumar à Póvoa de Varzim, para mais uma edição – a 16ª – das Correntes d'Escritas, este ano no renovado Cine-Teatro Garrett, no centro da cidade. Um novo palco para o programa do costume, isto é, cheio de mesas redondas, conversas, lançamentos – pretextos para se falar de literatura. O Jornal de Letras entrevista Inês Pedrosa sobre o seu novo romance, sobre qual também escreve Miguel Real.

Por gosto e por hábito profissional, Inês Pedrosa é leitora assídua de jornais. E neles encontra a matéria da sua ficção. Não se trata, contudo, de transposição direta. Apenas gosta de recortar histórias, episódios, situações, até anúncios dos tribunais, nos quais encontra decisões, hastas públicas, insolvências. Nas suas gavetas, acumulam-se papéis, que muitas vezes não chega a reler. É que, na verdade, não quer saber demasiado sobre cada caso. Só o suficiente para por a imaginação a trabalhar. E fazer descolar a ficção.
A atenção aos jornais também denuncia um programa estético: compreender e captar o seu tempo nas páginas de um romance. "O romance não é a resolução científica do universo, mas será seguramente uma boa forma de pensar o mundo em que vivemos.", dirá nesta entrevista a propósito do seu novo livro, Desamparo, que esta semana chega às livrarias, com o primeiro lançamento agendado para as Correntes d'Escritas (o segundo será a 10 de março, às 18h30, na Fnac do Chiado, em Lisboa). E um olhar sobre a crise que atravessamos, sintetizada num microcosmo - a aldeia de Arrifes, para onde convergem homens e mulheres, histórias e vidas.
Publicado pela D. Quixote, Desamparo é o sexto romance de Inês Pedrosa, que desde a sua estreia, em 1992, com A Instrução dos Amantes, tem publicado também contos, ensaios biográficos, fotobiografias, entrevistas e crónicas. Jornalista, passou por diversas publicações, incluindo o Jornal de Letras, onde começou, O Independente, Expresso, Sol, onde mantém uma crónica semanal, e Antena 1, onde tem agora um programa sobre livros, às quartas-feiras, às 23h, com Patrícia Reis e Rita Ferro, com coordenação de Ana Daniela Soares. Directora da Casa Fernando Pessoa, entre 2008 e 2014, traduziu no final do ano passado A Festa da Insignificância, o último romance de Milan Kundera, a quem dedicará a sua tese de doutoramento. E como o escritor checo, Inês Pedrosa procura espelhar o que vê à sua volta.

Jornal de Letras: Vivemos tempos de desamparo?
Inês Pedrosa: É a marca do nosso tempo, sendo, ao mesmo tempo, uma palavra curiosa. Comporta muitos significados: orfandade, solidão, abandono, desproteção. É uma daquelas palavras portuguesas difíceis de traduzir.

Foi a palavra que lhe deu o livro?
Sim. Por representar tão bem esta crise e por ser ainda, como percebi com este livro, um desafio. Esta ideia tomou completamente conta de mim a partir do momento em que reli a frase de Clarice Lispector, que surge em epígrafe: "Agora eu conheço o grande susto de estar viva, tendo como único amparo exactamente o desamparo de estar viva." E do que estava à procura.


Inês Pedrosa: "A arte só é grande quando entra nas vísceras da vida. Foi o que tentei fazer, sabendo que não é fácil, porque também nós estamos dentro da vida.
"

O susto de estar viva?
De tudo o que nos leva a reagir, neste momento de crise aguda, em que todo o sistema económico ruiu.

É dessa forma que vê a crise?
Estamos perante um fenómeno histórico tão forte como a queda do muro de Berlim. Tal como ruiu o comunismo, também me parece que este capitalismo – liberal e desregulado – se desmoronou. Só não sabemos o que fazer com os restos. Vivemos um período de transição.

O romance capta esse mundo em mudança?
Sim, da grande à pequena escala. O livro começa precisamente com a visão de conjunto e acaba num plano de pormenor, embora não defina um caminho de afunilamento. Apenas procurei que esses dois planos fossem surgindo em , contraponto. Como dizia o Albert Camus, que também cito em epígrafe – as duas epígrafes são uma espécie de programa estético – a arte só é verdadeiramente grande quando entra nas vísceras da vida. Foi o que tentei fazer, sabendo que não é fácil, porque também nos estamos dentro da vida. Valorizo muito o esforço de compreendermos o que está à nossa frente, muito mais do que o isolamento. Todas as obras de arte que têm esse conceito base são, para mim, mais estimulantes, quando comparadas com as que acham que arte é arte e vida é vida.

É uma 'observadora participante' do seu tempo?
Claro – e assumo o risco. O romance não é a resolução científica do universo, mas será seguramente uma boa forma de pensar o mundo em que vivemos. Mesmo quando se viaja para outras épocas, não podemos ficar de fora. Todos fazemos parte da incompletude que é a vida. Não me demito de refletir sobre ela e de dar o meu contributo.

Como é que esse desamparo se expressou inicialmente?
Ainda antes de encontrar o título, com a noção de que esta crise, por ser tão profunda, mostra as pessoas no osso. Antes dizia-se que a vida dos nossos filhos ia melhorar. Agora temos a certeza que isso não vai acontecer. E o ser humano, quando se sente no limite, revela-se por inteiro. A personagem que me agarrou de início foi a Jacinta. Tal como no romance anterior, baseei-me numa história de vida impressionante. Alguém que saiu de Portugal aos três anos. regres sando passado 50 anos. Durante esse tempo nunca conheceu a mãe. só quando voltou. A imagem da partida e do regresso seduziu me, tal como a procura do pai em Dentro de Ti Ver o Mar.

Nos dois casos, são mulheres resilientes.
Conseguem não ruir diante das dificuldades. For mais situações que atravessem, continuam. E esta Jacinta que criei, já muito diferente da que a inspirou, é alguém que viveu muito, conheceu muitas pessoas. Na sua porosidade. transformou -se num espelho que reflete quem a rodeia. Por isso, imaginei a a beira da morte, num limbo, entre o consciente e o inconsciente. Na sua cabeça, tudo se mistura, o que foi e o que poderia ter sido. o vivido e o desejado. É ela que nos conduz no início do romance, passando essa missão ao filho Raúl.

Tanto um como outro sofrem por terem crescido num vai e vem entre Portugal e Brasil. O desamparo também vem de não terem um chão a que possam chamar seu?
Vem de se sentirem num constante exílio, quer interior, quer exterior. São "os portugueses" no Brasil e "os brasileiros" em Portugal. Nesse jogo entre o cá e o lá do Atlântico interessou-me também o tema da imigração brasileira em Portugal, ao qual a literatura tem dado pouca atenção.

O que a interessou nesse tema?
Os estereótipos e a xenofobia camuflada, que começou com a imagem do dentista e que ainda hoje se mantém. Dizemos que o Brasil é um país irmão mas não é o que se verifica no dia-a-dia. Conheço muitos brasileiros que vieram trabalhar para cá e a má vontade em relação à diferença continua.

Ousar pensar diferente

Abre-se o mapa de Portugal e não se encontra Arrifes. É uma aldeia imaginária?
Espero que sim. Inventei muitos nomes mas quando fui confirmar já existiam. Na verdade queria um lugar que se parecesse com muitos mas que não tivesse relação com nenhum. Percebe-se que fica algures no centro de Portugal, que também é a zona que conheço melhor, e que é dominado por uma paisagem mista, com o mar ao pé. A atmosfera rural não anda longe da d'O Delfim, do José Cardoso Pires.

O facto de ter sido um território criado de raiz influenciou o desenvolvimento do romance?
Num certo sentido, sim. Fui desenhando o espaço mentalmente e tudo começou a fazer sentido. A ideia de uma aldeia próxima de uma vila e não muito afastada de uma pequena cidade. Longe dos grandes centros mas não completamente interior. Diversa como as personagens que vão aparecendo.

Há até a sugestão de uma praça central, por onde desfilam vidas.
A praça e o café central nos pequenos meios são uma espécie de revista social. Tudo se sabe, tudo se vê, mas também tudo se cala. E isso é muito interessante. É um microcosmo onde toda a vida se compacta.

Tem vários romances urbanos, este é um romance da outra face?
Muito deste romance passa pela ideia de êxodo, uma das marcas da nossa história. Mas agora é ao contrário – da cidade para o campo, do qual sabemos muito pouco. À imagem mitificada – dos montes e das férias – é preciso acrescentar outra: a da dureza. A vida no campo é dura. Mesmo a ideia da porta sempre aberta e da partilha entre vizinhança pode ser ilusória. Quem vive no campo passa por iguais ou piores dificuldades do que as pessoas da cidade. Basta ler o jornal. Malentendidos, partilhas, assassínios – no romance está tudo isso. Mas também a certeza de que nada é preto e branco – a cidade fria e o campo acolhedor ou a cidade dos inteligentes e o campo dos burros.

 

Inês Pedrosa – Histórias e personagens entre Portugal e Brasil

Nesta história, a sua polifonia ganha novas tonalidades.
Gosto de experimentar vozes diferentes. Em A Eternidade e o Desejo já tinha personagens a falar o português do Brasil, mas eram secundárias. Aqui são as principais. É um 'brasileiro' já tocado pelo nosso português, misturado como as suas vidas.

Apesar do mundo a ruir, o romance acaba com uma nota de esperança.
É uma questão de militância e de sobrevivência. Prefiro ser ingénua a viver desesperada. Ima crítica a um romance meu dizia que o fim era de uma excessiva candura. Talvez. Mas acho-a fundamental. Estamos cheios de pessimismo a fazer se passar por inteligência. A seriedade excessiva, que é a base das ditaduras, deita-nos abaixo. Daí o humor do livro. Nenhum país desapareceu, como uma Atlântida desaparecida, por não ter pago a sua divida. Se alegria não é definitiva, a tragedia também não será. É preciso ousar pensar diferente.

O que nos poderá amparar nestes tempos?
Ha várias personagens neste livro que, perdendo tudo, família, amigo, países e dinheiro, conseguem ainda assim redescobrir-se. Se calhar, precisamos de viver de outro modo, encontrar pessoas com quem possamos relacionarmo-nos mais profundamente, imaginar uma mulher na Presidência da República, por exemplo, como faz este livro, o que seria um sinal de que qualquer coisa estaria a mudar.

Agora sem funções institucionais, este tem sido um tempo mais para a escrita?
Era bom. Se pudesse viver só da escrita, ambicionaria escrever um romance por ano, como fez a Agustina durante décadas. Isso sim seria qualidade de vida. E não me faltam ideias. Tenho também vontade de voltar a publicar contos e crónicas, o que já não faço há algum tempo. Mas o romance, que só ganha com a experiência, tem essa coisa fantástica: ao contrário das outras artes, não requer meios técnicos, nem equipas. Só depende de nós.

Entrevista a Luís Ricardo Duarte, in Jornal de Letras (Edição de 18 de Fevereiro a 03 de Março de 2015)

 
 
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